terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Não conhecia Lupelius. Porém, escrevendo meu novo romance, ainda sem título definido, mas já na página 140, consultando pesquisas sobre Modernidade, descobri A escola dos deuses.Descobri também que o repensar sobre a vida e a morte nos enriquece e evoluímos se conseguirmos nos livrarmos do apego ao terreno.e à mecanicidade. Aconselho, se é que conselho seja útil, a sua leitura.Acho que a literatura so é v[alida se muda conceitos e comportamentos.Um livro é um universo novo quando nos encaixamos nele e seguimos esse novo mundo.Porém, hoje vou deixar aqui mais uma das minhas histórias.

Querida amiga

Roma, 20 de Outubro.

Querida Ana.
Como vai você? E a sua vida?
Sinto a sua falta. Tenho a sensação de estar sem meu braço direito.Por vezes o remorso atormenta-me o coração.Só por breves momentos.Não escolhemos nossos atos. Não decidimos sobre eles.Principalmente quando se fala de paixão.

No início
Quando me lembro do acontecido, meus sentidos todos, minha sensibilidade, se inflamam, sinto-me uma fêmea no cio.Tenho orgasmos espontâneos. Revejo-me seduzindo o seu Fábio. Pelo olhar, pelas atitudes, pelas roupas. Agora posso falar livremente sobre isso.À distância, como se eu estivesse falando ou lendo sobre outra pessoa. Como se fossemos três desconhecidos. Uma passagem, que se nos custou caro, deu-nos muito prazer. O prazer da liberdade.
Você tentando descobrir se ele a amava realmente. Quase desejando que a traísse.Não sabia porquê, apenas desconfiava.. Hoje sei, desejo e amor não se identificam. A paixão sim, é o desdobramento do desejo, a conseqüência deste, o alimento da fantasia que nos leva muitas vezes à frustração. Ou ao cadafalso.
Naquele primeiro dia, ensaiei meu número muitas vezes. Assim que me deitei sobre o sofá do consultório, iniciei a minha performance. Desde o primeiro cruzar de pernas. Ele não se surpreendeu, ou fingiu, quando descobriu que estava nua por baixo do vestido vermelho-sangue.Talvez ele esteja acostumado com esse tipo de paciente, pensei, afinal é psiquiatra.Porém, ao deslizar minhas longas unhas sobre as meias de náilon, percebi que se agitara na cadeira.Permiti que ele visse meu sexo desnudo por alguns segundos. Não interrompi as minhas queixas sobre a minha pretensa depressão.E no final da consulta, ao descruzar as pernas, abrindo-as o suficiente para uma visão total, percebi gotas de suor em sua testa. Não entendi, porque não me questionou. Teria percebido o nosso trato? Ao me despedir, fingindo timidez, dei-lhe a minha mão quente e senti a sua mão gelada. Minha querida amiga, você nunca deveria ter me feito esse pedido. Estremeceu tanto a nossa relação!
Na segunda consulta, lembra-se? Eram duas por semana.Vesti-me numa armadura.Um macacão inteiriço, de mangas compridas, escondendo todo o meu corpo.Apenas os mamilos despontando agressivos sob a blusa grossa.Quando fingi tropeçar no tapete, e ele tentou segurar-me, virei-me propositadamente e ele teve meu seio na mão em concha. Estranhei a sua reação. Descaradamente, apertou-me os mamilos com as pontas dos dedos e levou-me até o sofá. Tive medo, permeado do desejo de gostar daquele corpo másculo, de que fosse possuir-me naquele exato momento.Porém, abriu o seu caderno de notas e iniciou a sessão. Querida amiga, um homem de aço. Mas se pretendeu excitar-me, conseguira.O feitiço virava contra o feiticeiro. Como lhe contar isso na época? E mais excitada fiquei ao notar que ele não conseguira esconder a sua masculinidade sob a calça esporte. Falamos, ou melhor falei sobre a minha horrível solidão, discursei sobre a minha necessidade de um companheiro, olhar fixo em seu sexo. Não me sentia devassa, a luxúria acalma, e notei que despertara seu apetite carnal. Porém,
Minha amiga, não sei se devo continuar. Talvez você não esteja mais interessada.Lembro-me de sua tristeza ao descobrir que eu me entregara.Responda-me, diga-me qual é a sua vontade. Eu a respeitarei. Eu a farei como sempre fiz.
Digo-lhe que Roma está linda. É abril, o sol brilha, a cidade floresce.
Espero sua resposta.
Eva.

Roma, 10 de Novembro

Querida Ana.
Bem, pela sua resposta, devo contar tudo.Dar-lhe a minha versão para você comparar com a dele. Por quê? Isso se deu há tanto tempo.Qualquer versão que ele lhe desse não seria aceita. Não foi esse o trato? Mas se você assim o prefere.Conto-lhe agora, para provar que tudo terminou, e estou pronta a recebê-la a qualquer hora.
A terceira e última consulta, minha querida, foi a definitiva.Descobri então que o sexo comanda o mundo.Descobri o medo.Do abismo em que ia me atirar, do olhar de fera daquele tigre de andar manso, do brilho que senti sob o dourado de suas pupilas, temor daquele corpo que me subjugaria.Minha querida, o medo é um lado do prazer.O asco também. A labareda da lareira acesa dourava o seu corpo, quis morrer de deleite naquele sofá das confidências. Mãos que deslizam procurando, orifícios que se rendem, línguas que se procuram, membros que se interpenetram, o fascínio do ventre duro, a doce ternura dos seios, corpos se dobrando, joelhos em alavanca, e finalmente o gozo. Chamas dançando em suas costas, a fome saciada, o ponto G encontrado. Esse é o ato erótico do sexo? Por ele, Eva perdeu o paraíso, rendeu-se ao sofrimento da maternidade, Adão sujeitou-se à agonia, e essa Eva, eu, esqueci minha amiga, do nosso intento. O desejo é mais forte que tudo.Depois da sede estancada, o julgamento. A frieza.Dois brinquedinhos nas mãos do deus do amor. Eros? A flecha certeira no meu coração, não a dele, mas a sua, o arco estava em suavocê __ que me testou covardemente.Entretanto foi desse ato de paixão que descobri o verdadeiro amor. A preferência pela mão que acaricia levemente, o corpo sem pêlos, a textura da pele, as pernas o gozo despertado pelo tato. Ele não entendeu quando o agradeci. Por nós duas. Demorou a perceber o que havia feito. E que, através desse ato, libertou-nos. Mostrou-nos a saída do labirinto.Não adiantei mais nada, e você lhe revelou tudo.Bem, o escândalo foi forte. Os diferentes ainda são apedrejados.As bruxas queimadas. Não aqui em Roma, essa cidade aberta, minha cara, onde o tempo tudo cicatriza. Espero você.Ardentemente. Você e sua fragilidade.Diga-me quando virá. Comprarei flores, enfeitarei a casa. Queimarei incensos a Shiva. Depois de todo esses anos, nosso quarto está à nossa espera.
Sua Eva.



de Nilza Amaral

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Se na noite, um estranho
Nilza Amaral*

forçando a porta de entrada penetrasse em meu apartamento, e diabólico e cruel, explorasse com seus passos macios e premeditados a minha intimidade, devassasse a corrente dos meus pensamentos, extraindo dos cantos do meu cérebro as palavras não ditas, apenas pensadas, se invadisse os meus aposentos, revirasse as minhas gavetas, à cata do quê? jóias, se não as tenho, dinheiro escondido, muito menos, fetiches? tão ocultos jamais expostos, como aquela roupa íntima vermelha usada nos momentos do sexo mais pervertido, ou aquele pé de coelho que um dia me ofertaram com a promessa de que ele amaciaria os caminhos, se esse estranho embaralhasse a minha vida, violentasse o meu pudor sem a minha concordância, penetrasse a minha cozinha em busca de alimento, encontrasse aquela sobremesa especial que fiz com carinho, e com um bah de desprezo, atirasse tudo ao cachorro, não sem antes lhe dar um pontapé no traseiro, em seguida sem aviso, alcançasse a faca afiada e com ela me ameaçasse, se entregue ou eu te furo, e me atirasse ao chão e me possuísse sob gritos de meu protesto irado, se esse estranho me humilhasse de todas as maneiras, penetrando violentamente todos os orifícios de meu corpo em busca do prazer insaciável, achando que o meu dever era aceitar resignada a sua condição de macho de cetro impiedoso, e a minha de fêmea sempre pronta, pernas abertas, e se depois da posse, estirado ainda no ladrilho frio da cozinha, acendesse um cigarro e me olhasse com os olhos semicerrados, feliz com a sua conquista e vangloriando-se de ser bom amante, o querido de todas as mulheres do bairro, se esse estranho depois do ato do sexo, percorrendo com uma faca todos os contornos de meu corpo, parando em meus mamilos duros de prazer, penetrando a minha vagina ainda quente, riscando a minha pele eriçada, então se levantasse e ordenasse, faça um café, mulher, abra uma cerveja, se mexa, me agrade, que eu mereço pois afinal entrei na tua vida para te fazer feliz, ah, se ainda esse estranho resolvesse aportar na minha casa, e dela tomar posse, com promessas de mudança e de carinhos, se chegasse todos as noites depois de passar em meia dúzia de bares, embora para que ele não voltasse, eu rezasse todo os terços, que ele me arrancava das mãos pisava sobre as contas, gritando eu sou teu único Deus, e, se como senhor e dono me exigisse, me possuísse pele enésima vez, gritando, nenhum deus te dará mais aleluias do que eu, e depois de todas as vontades satisfeitas, deitasse na minha cama e dormisse a sono solto, até a manhã seguinte, e se assim fossem todos os dias, a relação de dois estranhos sob o mesmo teto, e se eu mais uma vez rogasse aos santos, sobre meus joelhos sangrando, para acontecer algum fato, mesmo que fosse uma desgraça, que interrompesse essa corrente, ou que a minha vontade predominasse por alguns instantes, o tempo suficiente para expulsá-lo de minha vida, eu agradeceria pelo resto da vida, mas se a fraqueza, o medo, o amor, o ódio ou o prazer, impedissem o cumprimento dessa vontade, e eu insensata o matasse com mil facadas perfurantes que lhe alcançassem a alma de coisa ruim, talvez seu espírito retornasse mais feroz do que o anterior desencarnado, e mais me torturasse, me penetrando, me violentando, me satisfazendo. Se esse estranho a cada dia se fizesse mais odioso e mais desejado, se minasse em meu íntimo dia a dia, minuto a minuto, a volição da vida, se arraigasse o desejo insensato de liquidá-lo na hora do orgasmo, a hora da distração e do alheamento, se despertasse em mim o lobo interior que leva à crueldade em vez da gazela que bale, se esse estranho me asfixiasse com seu suor, e num momento de fúria eu o estrangulasse ou o aleijasse cortando seus testículos recheados, e o banisse da minha vida escravizada, então talvez eu descansasse e abrisse as portas para a solidão se alojar. Se esse estranho não tivesse o riso cínico de superioridade estampado na face, a lubricidade sempre pronta, se não soubesse o poder de sua dominação, da força da perdição que impele à morte, a certeza do seu absolutismo, se esse estranho que invadiu a minha noite não tivesse consciência do quanto se tornou imprescindível, se desaparecesse assim como apareceu, com seus passos mansos e sua fala macia, com suas pretensas promessas de felicidade, se esse estranho que comigo hoje habita se fosse, desistisse de mim, então talvez eu me desesperasse.
Se numa noite, um estranho tentasse entrar em minha vida para se instalar, eu o teria impedido, teria trancado com todas as chaves a porta de entrada da minha casa, e mais as entradas de meus sentimentos, fechado o caminho do labirinto do meu corpo, ou gritado por auxílio, e se ele superando a minha força física e as minhas intenções, conseguisse o seu intuito, e me submetesse ao seu sexo, então eu o assassinaria, e seria em legítima defesa. E se ele implorasse, em nome do passado, do amor, da luxúria, eu recusaria para que ele fosse nada mais, apenas um estranho na noite tentando forçar a minha porta de entrada. Se na noite, um estranho tocasse a porta da minha alma e do meu destino,

*Nilza Amaral, ficcionista brasileira, autora das novelas: O dia das Lobas, Modus Diabolicus, Amor em campo de Açafrão, O Florista, entre outros escritos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007